(Para Maria de Lourdes Quintana de Azambuja, minha amiga)
Ah! Maria, quantas saudades! Logo deve fazer seis anos que te foste com a leveza das pessoas realmente livres, aquelas que só precisam de um raiozinho de sol e de uma gotinha de orvalho para viver, e te foste como alguém que se senta no seu raiozinho de luz como uma criança que se senta no balanço de um parquinho – com um impulso dos teus pés de menina, te embalançaste num segundo deste lado para o outro lado da vida, deixando a cada um de nós na maior perplexidade, pois nenhum de nós sabia que podia ser tão fácil partir!
Tu te foste diretamente do teu balanço de luz para a nuvem mais alta e mais bonita, a navegar pelo espaço, e nós que ficamos e que não éramos tão livres quanto tu, quedamo-nos boquiabertos com a tua facilidade e leveza, pois sabíamos que eras uma pessoa livre, mas não sabíamos quanto.
Penso em ti, Maria, como o ser humano mais livre que já tive a oportunidade de conhecer – tua sede de justiça também era uma coisa impressionante, e a garra com que defendias o que achavas que era justo também até hoje me impressiona, se bem que tenho convivido, ao longo da vida, com outras pessoas com tal sede de justiça. E eras amiga, como eras! Lembro-me, agora, de coisas tão corriqueiras e tão grandes ao mesmo tempo! Uma delas é da tua manta de lã cor de vinho, tecida por tua mãe, coisa tão linda, que eu ambicionei tanto quando vi! Não houve nenhum titubeio da tua parte: se eu gostara tanto daquela manta, ela era minha – e me envolveste nela como quem sabe que vai partir logo e quer deixar para ti um pequeno elo material. Encanto-me a cada vez que vejo aquela manta, que te traz para tão perto de mim quando nela me envolvo! Lembro-me como tu filosofavas com propriedade sobre a pequena quantidade de coisas que realmente necessitávamos para viver – e de como eu me encantava quando dizias:
- Roupas? Cada um de nós tem um armário cheio; não precisamos de mais do que temos – e então eu refletia sobre como tinhas razão.
Poderias ter morado num castelo cheio de ameias, mas nada precisavas além de um quartinho, e do teu raiozinho de sol, e da tua gotinha de orvalho, e da tua humildade para vender bombons na praia, fazer teatro ou bordar cintos com lantejoulas, e de um cálice de conhaque nos dias de asma. Tinhas a iluminação necessária para ver com respeito a cada pessoa e a cada profissão, e nada te escandalizava ou te levava a julgamentos desnecessários, como ainda não aprendi bem como fazer. A Justiça, sim, essa te importava muito, e como a defendias!
Para mim é muito lindo lembrar-te nas tantas atividades culturais que freqüentávamos, chegando sempre linda, com a simplicidade e a leveza daquelas roupas de quem um dia embarcara para valer no Movimento Hippie, e atravessara o Brasil de pé descalço, a fazer teatro nos mais diversos palcos, e a aprender tudo o que alguém podia te ensinar – falavas dos grandes nomes da Arte, do Budismo, e de tantas outras vertentes com a familiaridade com que falavas comigo – e nos finais de noite, nos bares de Blumenau, filosofavas sobre o que eu nunca pensara ainda: que o Movimento Hippie ainda não se completara, que não se podiam medir, ainda, as conseqüências todas dele. E eu te ouvia e te admirava, e tinhas tal humanidade que jamais ficavas indiferente a nada, e jamais desprezavas as coisas lindas como o Amor, por exemplo, mesmo que se tratasse de amor impossível, sem esperança. E o orgulho que tinhas do lutador teu pai, da tua mãe, dos teus filhos, da netinha Manuela – conheci Manuela no teu colo – Victor veio logo em seguida e ainda tiveste o tempo de conhecê-lo.
Estavas sempre atenta a tudo, a cada conceito e a cada sentimento de cada um, mas o que mais te fascinava, decerto, era a beleza. Naqueles últimos tempos tinhas decidido um novo rumo para a tua vida: o manuseio da beleza. E teu cantinho de dois cômodos ficara cheio de tintas, miçangas, sedas – resolveras usar das mãos que sabiam escrever tão bem para criar beleza em bolsas, em bijuterias, em maravilhosas coisas que eram como que saídas de contos de fadas, e eu ia lá conversar um pouquinho e ficava vendo a tua habilidade com a imaginação e com as mãos, enquanto tomavas teus chazinhos preferidos. Nesse tempo final, costuraste e pintaste para mim um traje de seda amarelinha que é como um sonho: uso-o muito pouquinho, a cada verão, para que ele nunca se acabe. Na verdade, quantos pequenos elos materiais deixaste na minha vida!
Eu voltara de Florianópolis, fazia pouco, trazendo um conjunto de bijuteria de habilidosa artesã, que trançava fios de ouro em forma de crochê. Lembro como pensara em ti desde o momento que vira a criação daquela artesã, e como fui à tua casa para te passar a receita daquela coisa tão linda – mas não chegaste a fazê-la. Bem por aqueles dias, como se estivesse a usar os fios de ouro em formato de luz, subiste no balanço do lá-vai, e partiste para o outro lado, com a leveza de um beija-flor, mas eu nunca acreditei que partiste de verdade. Tua energia plena de liberdade não pode ter-se ido assim completamente, e então, até hoje, quase sempre que o meu coração dói, eu ando pelas ruas olhando para cima, e peço a tua ajuda. Faço-o com simplicidade, assim como tu eras. Digo:
- Abençoa-me, Maria! – e então posso sentir uma carícia na alma que é como se fosse feita por uma pena de pássaro, e sei que me ouves e me consolas. Tu te embalançaste para o lado do infinito, foste pregar miçangas e lantejoulas nos pores-do-sol e passar tinta de seda nas nuvens, mas manténs uma mão estendida para cada um de nós que te amava, e nos afagas a cada vez que precisamos de ti.
Ah! Maria, me abençoa sempre, por favor! É muito dolorido não te ter por perto!
Blumenau, 14 de maio de 2008.
Urda Alice Klueger
Escritora.
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