quinta-feira, 5 de junho de 2008

TIROFIJO

Ontem à tardinha saí a caminhar pelo frio da minha cidade, e fiquei a observar no céu quase todo azul, uns fiapos de nuvens brancas que se esgarçavam em fios, cada vez mais finos, cada vez mais esvoaçantes no vento gelado, e me passou uma idéia pela cabeça: não seria Tirofijo quem estaria por aí a espiar as coisas, e na primeira folga da sua vida tenha vindo nos fazer uma visita, e quando viu tanta pobreza e tanta injustiça nos entornos desta minha Blumenau que as autoridades costumam chamar de “Europa Brasileira”, tenha resolvido fazer uma alegria para este povo que carrega tantos problemas nos ombros encurvados, e resolveu transformar em brincadeira e arte aqueles poucos fiapos de nuvens?

Bem pode ser – já são mais de dois meses que ele dorme no abrigo de uma montanha colombiana, e eu conheço aquelas montanhas, e sei como elas são lindas e férteis, com seus muitos campos de muitos cereais de muitos tons de amarelos e verdes, campos plantados até lá em cima, onde começam as neves eternas – embora a maior parte da vida de Tirofijo não tenha sido como teria gostado que fosse, dentre os campos de cereais, mas lá longe, nas montanhas ainda não cultivadas, onde é o único lugar que um ser humano ainda tem para se abrigar, quando resolve que já não é mais possível mesmo compactuar com o deus Capital.

Nos últimos dias, os mais abalizados escritores e jornalistas do mundo escreveram sobre ele, contaram tudo o que puderam sobre a sua vida, e então a mim, pequena escritora de província, restou contar, talvez, sobre os seus sonhos, a sua alma.

Ele viveu 78 anos, 60 dos quais em combate revolucionário armado ininterrupto. Quem era? Era um menino colombiano chamado Pedro Antonio Marín, que fez coisas simples na sua infância, como vender queijo e trabalhar na terra – e que sempre teve a clarividência de ver onde a Injustiça estava e onde oprimia, e foi por isto que tão cedo pegou sua carabina e seu cachorro e tratou de defender seu povo. Mais adiante vai assumir um codinome, o que foi nome de um outro lutador colombiano, Manuel Marulanda Vélez, um jovem que foi assassinado porque também acreditava na Justiça. É com este codinome que ele acaba ficando conhecido – ou também como Tirofijo, pois se dizia que sua pontaria era uma coisa impressionante.

Os que o conheceram de perto dizem como era profundamente sábio e amoroso, de uma grande simplicidade por toda a vida, sem nenhum laivo daquele fascismo tão comum a grande parte das lideranças, que tem dentro de si a sede insaciável de mandar – sua sabedoria não vinha do garrote vil das Academias (pois eu vi, e faz pouco tempo, uma prova de mestrado onde as únicas respostas possíveis para as questões era que o neo-liberalismo chegara, resolvera todos os problemas do mundo e colocara um ponto final na História – e tem gente que leva tais mestrados a sério e depois pensa que seu pequeno saber garroteado é algo que se compara ao grande saber de quem teve a clareza de ler no povo e a ousadia de defendê-lo de arma na mão!).

Líder dos oprimidos, creio que foi em 1964 (portanto, há 44 anos) que, juntamente com outros 47 homens e mulheres que defendiam seu direito à terra, enfrentando numeroso exército de milhares de soldados, fundou as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.)

Eu andei pela Colômbia e vi bem como aquele país vive uma longa guerra civil, e vi também a beleza daquela terra e da sua gente, e do seu Caribe que parece de cristal, e das suas montanhas andinas por onde se viaja em largas rodovias, e soube tantas coisas, tantas coisas... A situação da Colômbia é muito mais complexa do que nos dizem: entre as forças de Esquerda e de Direita (as FARC e o Exército) há as AUC, uma horrorosa guerrilha de direita, onde estão incorporados os piores assassinos egressos do submundo do crime, que não titubeiam em usar moto-serras para despedaçar vivas as suas vítimas, e que quando assaltam um pueblito, matam todas as pessoas lá existentes, homens, mulheres e crianças – na verdade, não é bem assim – deixam vivas duas ou três crianças, para contar suas atrocidades mais tarde – mas a tais crianças deixam marcas indeléveis: a facão, cortam-lhe um braço, às vezes uma perna... As AUC já conseguiram enxotar das suas terras 3.000.000 camponeses colombianos – não é preciso ser-se adivinho para se entender quem almeja tantas terras vazias!

Alguém vai dizer: por que a esquerda não funda um partido, não muda as coisas através de eleições? Na Colômbia não dá para fazer tal coisa não, meu amigo: pensou em fundar um partido, um sindicato, sei lá, já morreu. Procure saber as estatísticas dos assassinatos naquele país.

Não vim aqui, hoje, porém, para falar da Colômbia – vim para falar de Manuel Marulanda, o Tirofijo, o homem que passou 60 anos andando pelas montanhas, acompanhado por um cachorro, uma carabina e uma mulher que o amava, um dos maiores revolucionários da América dita Latina. Segundo se sabe, não chegou sequer a conhecer Bogotá, a linda capital do seu país – mas com certeza conhecia cada vereda de cada montanha, cada sentimento escondido no coração de cada oprimido, e quando espiava pelas frestas dos seus olhos de mestiço de índio, podia ver, lá adiante, um tempo ao qual dedicou a vida, o tempo em que o deus do mundo já não seria o deus Capital, um tempo de mais Justiça, mais alegria, mais liberdade... Tirofijo teve a oportunidade de sonhar seu sonho até o fim, pois partiu como partem tantos justos: junto aos seus companheiros e à sua amada, o cachorro por perto, beirando os 80 anos, no refúgio que sempre lhe foi inexpugnável de uma montanha. Decerto, o grande coração da América parou de bater por um pouco, naquele dia, tamanha a mágoa sentida – nós não sabíamos, não percebemos. Os companheiros interpretaram aquela parada, no entanto – souberam fazer o respeitoso silêncio necessário, entregaram Tirofijo à montanha e se quedaram silenciosos por dois meses inteiros. Quando soubemos, o grande guerrilheiro talvez já estivesse por aí, descansado e leve, a observar tantas coisas que não tivera tempo durante a vida! Foi por isto que pensei, ontem, que poderia ser ele a esgarçar fios de nuvens lindos como fios de seda sobre esta minha cidade, como um presente de esperança para os tantos injustiçadas. Por via das dúvidas, fiquei a espiar o céu, imaginando que de repente poderia ver a sua barba de prata, e disse baixinho:

- Bem-vindo, Tirofijo! A gente, aqui, também, precisa tanto de ti!

Blumenau, 01 de junho de 2008.

Urda Alice Klueger

Escritora

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